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18 de abril de 2024

A história da mulher que aceitou ficar cega para não abortar a filha


Por Monique Manganaro Publicado 16/08/2019 às 19h28 Atualizado 23/02/2023 às 19h58
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Realizar o sonho de ser mãe ou continuar a vida “normal” enxergando? Com apenas 15 anos, Márcia Bonfim Vieira foi colocada diante dessa escolha após ser diagnosticada com uma doença inflamatória nos olhos. Mesmo com opções de reverter a cegueira, para ela, optar pela vida da filha era a única saída correta e “óbvia”. Não havia escolha. O aborto não era opção, garante.

Paranaense de São João do Ivaí (a 121 quilômetros de Maringá), Márcia engravidou em outubro de 1993.

“Eu ia fazer 15 anos ainda, em dezembro, [mas a gravidez] não me assustou, porque eu sempre quis ter um bebê. Então, fiquei muito feliz na época”, relembra.

Em meio à emoção de receber a primeira filha, os sintomas de uma doença que mudaria toda a vida que Márcia levava apareceram ainda nos primeiros meses de gestação. As dores nos olhos, a vermelhidão e a visão turva foram os sinais iniciais. Em dezembro do mesmo ano, a então adolescente já tinha perdido praticamente toda a visão.

Especialistas precisavam ser consultados. Pela falta de recursos da cidade à época, foi preciso procurar ajuda na região. Após a primeira consulta em Apucarana, no mesmo dia, os médicos decidiram transferi-la para Curitiba, onde ficou internada por 12 dias.

Foi na capital o diagnóstico: uveíte.

“Lá eu descobri que eu estava com uma doença sem origem. Eles não conseguiram achar a causa para a minha perda de visão no momento. Mas já estava muito inflamado e [eu] já não estava enxergando mais nada”, explica.

O tratamento foi iniciado em Curitiba, a base de fortes remédios, mas a vida continuava e a gravidez evoluía. A esperança de voltar a enxergar ainda existia.

Sem conseguirem determinar a origem da doença, os médicos de Márcia decidiram dividir o caso com oftalmologistas americanos que estariam no Brasil naquele ano.

Com a chegada dos médicos ao Brasil – e ela entrando no sexto mês de gestação – surgiu, então, uma boa notícia (aparentemente): os especialistas descobriram um tratamento e gostariam de submete-la à pratica que a devolveria boa parte da visão.

“Na hora, eu fiquei muito feliz de estar os ouvindo falar que eu ia voltar a enxergar”.

Porém, ao explicarem os procedimentos que seriam necessários, veio o susto.

“Para a gente fazer esse tratamento, você vai ter que fazer o aborto. Você pode romper essa gravidez para voltar a enxergar. Você vai passar por um procedimento que o feto não vai suportar”, relembra.

Recuperar a visão exigia que Márcia abandonasse o maior sonho da vida até o momento.

Ao saber da notícia, mesmo ainda desesperada pela condição em que estava, ela decidiu rapidamente não fazer o aborto.

“Eu queria ser mãe. Não havia dúvida. É óbvia para mim essa escolha”, enfatiza.

A gravidez seguiu e em julho do ano seguinte chegou o momento tão esperado: o nascimento de Lariane. Para os médicos, ainda restavam preocupações sobre a formação da bebê por causa dos remédios utilizados no início da doença. Mas a criança nasceu sem sequelas.

O amor de mãe se mostrou, mais uma vez, acima de todas as dificuldades enfrentadas pela família.

“Eu pedi para o meu médico me deixar vê-la. Eu só queria ver a minha filha na hora em que ela nasceu. Aí, ele falou: ‘eu vou te mostrar’ e encostou o rostinho dela, ainda quente, na minha bochecha. Eu pude ter o primeiro contato. Isso para mim foi muito lindo”, emociona-se.

A chegada a Maringá e a transformação pelo esporte

Mesmo após ser submetida a diversos tratamentos, voltar a enxergar já não era mais alcançável. O quadro era irreversível.

Ainda enfrentando dificuldades para lidar com as novas condições, em 2000, mais mudanças. Uma nova vida em Maringá começava e o recomeço para Márcia estava próximo.

Na época, ela lembra que ainda não andava sozinha pelas ruas e tinha vergonha da própria condição. O preconceito em usar bengala a deixava dependente de outras pessoas.

Foi quando conheceu a Associação dos Deficientes Visuais de Maringá (Adevimar).

“Foi a associação que me apresentou ao mundo. Sou muito grata por tudo o que vivi lá”, afirma.

A essa altura, Márcia teria uma ajuda inesperada para seguir a vida: o esporte.

Dentro da própria associação, ela teve o primeiro contato com o goalball – modalidade praticada exclusivamente por deficientes visuais.

No convívio com outras pessoas na mesma condição, Márcia lembra que ganhou confiança e vontade de voltar a ser independente nas práticas do dia a dia.

“Eu queria muito poder ser livre como fui na infância.”

O contato com o esporte foi o gatilho para que ela se redescobrisse. A prática a levou para as competições, regionais, estaduais, nacionais e internacionais após ingressar na seleção brasileira feminina da modalidade.

Depois de oito anos em Maringá, a nova Márcia e a filha voltavam a morar em São Paulo. A ideia era se preparar ainda mais para os jogos paraolímpicos da China.

Reconhecimento

A história da atleta na seleção terminou em 2014, com grandes conquistas na bagagem: participação de mundiais na Finlândia e na Turquia; paraolimpíadas em Londres, campeonato na Suécia.

Dentro do goalball, um novo amor. Após anos separada, Márcia conheceu o atual companheiro. Hoje, aos 39 anos, a pequena Lorena é a irmã de Lariane, que completou 25 anos. Para Márcia, o amor pelas filhas e pela família se multiplicou.

“Atualmente, eu sou atleta de alto rendimento do Santos Futebol Clube e no ano passado a nossa equipe foi campeã brasileira. Eu sou muito realizada no esporte, na minha vida, e hoje só tenha a agradecer por tudo o que aconteceu. Pelos momentos não tão bons, porque servem para a gente criar força. É caindo que a gente aprende a se levantar”, diz.

Até hoje, nenhum arrependimento pelas escolhas que fez.

“Eu dou a minha vida por elas. Elas são a minha razão de viver, a minha força de lutar com a vida e nunca desistir.”

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