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20 de abril de 2024

Ditadura das autoridades?


Por Zona Livre Publicado 27/08/2019 às 23h30 Atualizado 24/02/2023 às 01h08
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LEI DO ABUSO DE AUTORIDADE OU DITADURA DAS AUTORIDADES?

* Dirceu Galdino Cardin

Vete tudo! É o brado da multidão nas ruas. Para quem detém vivência e experiência perante os mais diversos órgãos públicos, é o mesmo que o povo bradando a condenação de Jesus Cristo. Da mesma forma, os manifestantes não perceberam que sua postulação é um retrocesso jurídico, político e histórico.
O “Vete tudo!” é um retrocesso jurídico tanto pelo prisma constitucional quanto pelo infraconstitucional. O Poder Constituinte, tendo plena consciência do abuso das autoridades, como costuma acontecer em qualquer sociedade, protegeu o cidadão com o habeas corpus (art.5˚, LXVIII, da CF), o mandado de segurança (art.5˚, LXIX, da CF) e com o direito de petição (art.5˚, XXXIV, alínea “a”, da CF). Amparou o direito do cidadão contra as autoridades que extrapolarem suas atribuições.
No aspecto infraconstitucional, a lei nasce para o futuro e para viger no tempo máximo que puder corresponder aos anseios da sociedade. Quando deixa de atender ao clamor da sociedade, ela é revogada totalmente ou modificada parcialmente. A última lei de abuso de autoridade é a de n˚ 4.898/65 e está defasada. A atual tem por desiderato atualizar a matéria no tempo pela necessidade de coibir realmente os abusos de autoridades. Não iremos relatar os inúmeros abusos que conhecemos porque este artigo se transformaria num tratado.
Apenas quem não advoga é contra a aludida lei, porque desconhece os inúmeros abusos de todo e qualquer tipo de autoridade. A atual lei transcende a Lava Jato; esta é apenas um momento histórico que o Brasil está vivendo. Contudo, uma lei quando nasce imita o ser humano: aspira à eternidade. Ela não existe em decorrência da operação Lava Jato, mas para caminhar rumo ao futuro.
Dizer que essa lei irá “acabar com a Lava Jato” é um sofisma, porque a lei não tem efeito retroativo. Portanto, a preocupação com um eventual fim da Lava Jato não deve existir. Os atos que foram praticados estão consumados. Não retornam mais. Processo avança, não regride. E se existirem provas de delitos em termos de futuro haverá incúria da Procuradoria caso não os denuncie. Nesse caso, sim, estaria sendo cometido abuso de autoridade, por omissão, caso não houvesse denúncia.
O “Vete tudo!” é um retrocesso político. A lei nasce para normatizar eventos sociais. A sociedade brasileira sempre foi colocada em situação servil perante as autoridades, por isso que, em vez de o governo servir o povo, este serve o governo. Começa com a pesada carga tributária para atender as classes nobres e termina com qualquer autoridade se julgando a suprema do universo. Sempre foi assim, infelizmente, e a esperança é de mudança com o atual governo, mas é muito cedo para qualquer juízo de valor.
Quando a sociedade brasileira se desperta e se levanta contra as autoridades – todos os movimentos encetados que mudaram o país foram para mudar o sistema de corrupção causado pelas autoridades –, essa luta deve continuar para atingir o ápice. Deixar as autoridades manipularem e abusarem de acordo com a vontade delas e não consoante o comando da lei seria retroceder. Quando há uma lei que surge para libertar a sociedade dos autoritarismos, há aqueles que agem como alguns agiram no Êxodo: queriam retornar à escravidão do Egito.
O “Vete tudo!” é um retrocesso histórico. O princípio da isonomia nasceu na Ágora, em Atenas, pois todos eram iguais e assim deliberavam os assuntos debatidos. A República tem exatamente este pressuposto: garantir que todos sejam iguais, cidadãos e autoridades – e, para quem não sabe, o Brasil é uma República Federativa. Se não houver lei combatendo o abuso de autoridade, não haverá segurança jurídica, porque a vontade da autoridade prevalecerá sobre a vontade da lei. Na Antiguidade Aristóteles já chamava a atenção:

A sociedade, “quando é governada pela lei, está pedindo a Deus e à Inteligência que o façam, mas quem deseja o governo de um ser humano está produzindo uma besta selvagem, pois as paixões são como bestas selvagens e os sentimentos poderosos levam à perdição os governantes e os melhores homens” .

Se não houver uma lei coibindo o abuso de autoridades, não estarão sendo potencializados ainda mais os abusos? Será que a sociedade ainda não se cansou de tantos exemplos vivenciados em nossa história?
Pelo visto, enquanto os gregos conquistaram na Ágora a isonomia entre cidadãos e autoridades e se elevaram em termos de cidadania, a sociedade brasileira pretende retroceder a um período anterior ao Ágora, estabelecendo uma diferenciação – as autoridades têm mais poder para abusar do poder.
É cândido tal movimento que vê a ponta do iceberg da Lava Jato, mas incautamente não enxerga a parte oculta de um sistema de opressão e do calvário diuturno de abusos de autoridades. Pior ainda: pretende, na realidade, institucionalizar e perenizar o abuso das autoridades, tão comum em nosso país, quando é dever de cada cidadão que detém consciência cívica, ética e política lutar contra o arbítrio e o abuso das autoridades.
A história é um livro que ensina, e às vezes com lições amargas; contudo, lamentavelmente o povo brasileiro, pelo visto, esqueceu essas lições. O filósofo Montesquieu, já em 1748, relembrava e alertava o mundo:

“(…) a experiência eterna mostra que todo homem que tem poder é tentado a abusar dele; vai até onde encontra limites. Quem o diria! A própria virtude tem necessidade de limites.‘Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder’.”

Ora, se não houver uma lei severa para combater o abuso das autoridades, para em suas malhas pegar todos os tipos de abusos, estará sendo institucionalizada, contrario sensu, a ditadura das autoridades. É isso que a sociedade brasileira quer?

* Dirce Galdino Cardin – Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (1975), especialização em Direito Tributário Aplicado à Empresa pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (1976), especialização em Direito Privado e Processual (1979) e especialização em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho (1982) ambos pela Universidade Estadual de Maringá. Curso de Aperfeiçoamento pela Universidade da Califórnia (2003). É advogado da Advocacia Galdino S/A (desde 1975), atuando nas áreas de Direito Público e Privado. Membro efetivo do Instituto Galdino, Maringá-PR. Ministra palestras e cursos na área do Direito Educacional.

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