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19 de abril de 2024

O ESTADO INIMIGO DO ESTADO


Por Rogel Martins Barbosa Publicado 22/08/2019 às 10h00 Atualizado 23/02/2023 às 23h50
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Dia destes no gmconline li uma matéria que me deixou preocupado e ao mesmo tempo confirmou aquilo que sempre soubemos: o estado é inimigo do estado, em especial em resíduos. Mas antes de comentarmos sobre a matéria, preciso fazer algumas considerações.

Quando se estuda o direito na academia, logo no primeiro ano, a alma pura do acadêmico de direito, cujo intelecto jurídico ainda é um livro em branco, tem escrito nas primeiras linhas da introdução ao estudo do direito, que o ordenamento jurídico é perfeito.

Ordenamento jurídico, meu caro leitor, lembrando De Plácido e Silva, que muito me auxiliou no século passado no curso jurídico, é o sistema de regras e princípios criados para regular e proteger todas as relações e interesses dos cidadãos entre si e entre eles e o estado, com o intuito de manter a própria ordem social e política do estado. O ordenamento na prática é este amontoado de leis e mais o que o judiciário diz sobre as leis ou que reconhece que é lei, ainda que não seja, e que afeta as nossas vidas mortais.

Quando o acadêmico aprende que o ordenamento jurídico é perfeito, ele aprende que as coisas que estão neste ordenamento não podem ser contraditórias, não podem ser e não ser ao mesmo tempo. Que existe uma lógica, de modo que quando uma regra deixar de ser aplicada por uma exceção, todos compreendam que é uma exceção, mas que persiste a regra. Que em situações iguais, a lei se aplica de forma igual, se interpreta de forma igual.

Embora o direito seja um só, para efeito de estudo, considerado sua complexidade, se subdividiu em diversos ramos. Vou dar alguns exemplos: direito constitucional, direito de família, direito tributário, direito do trabalho, direito administrativo, direito ambiental, direito dos resíduos entre outros. Mas todos estes ramos devem conviver sem se contradizer, porque o direito é uno enquanto ciência e significa a justa proporção de bens e encargos na sociedade entre os indivíduos. É a tal perfeição do ordenamento.

Quando se tem um fato no mundo real, o mundo jurídico destaca um ramo deste direito para regular e entender este fato. Um exemplo: se há um rompimento de um casamento, quem vai atender esta relação é o direito de família. O casamento na pratica jurídica, não deixa de ser apenas um contrato. Ora, poderia muito bem ser regulado pelo direito civil na parte dos contratos. Mas como esta relação familiar detém n qualidades que extrapolam o contrato civil, então o direito se especializou para atender melhor esta relação, e daí a aplicação do direito de família. Outro exemplo: um material sem dono jogado no chão, que chamamos de lixo. Ora, se estiver poluindo o local, poderia ser tratado pelo direito ambiental. Mas poluir o local é apenas uma consequência de estar o material ali. Estar ali tem muito mais consequências do que apenas poluir e existe toda uma cadeia de atos que foram cometidos anteriormente para estar ali. Como esta relação detém n qualidades que extrapolam o direito ambiental, então o direito se especializou para atender melhor esta relação, e daí a aplicação do direito dos resíduos.

Resumindo, sempre terá um ramo que vai prevalecer sobre determinado fato ou ato da vida, com a finalidade de se evitar contradições e manter previsível o resultado de sua aplicação, gerando a tão sonhada segurança jurídica. Segurança jurídica na prática é ter a certeza que o estado não vai tirar da cartola uma surpresa para lhe dizer que o que você fez não vale mais, o que fazia e que podia, agora não pode e ainda você vai ser punido pelo que fez no passado.

Feita estas considerações, vamos ao caso relatado na matéria. Ele será apenas um exemplo para desenvolvermos em tese argumentação de como o estado é inimigo do estado, na verdade de como o estado é inimigo de seu senhor, o cidadão.

Segundo a matéria, uma decisão do Ministério do Trabalho, que na verdade é uma secretaria do Ministério da Economia, proibiu que coletores de lixo de uma empresa contratada por um município, andem no sistema de apoio existente na traseira dos caminhões prensa que transportam resíduos domiciliares. Com a decisão do “Ministério do Trabalho” a empresa contratada pelo poder público municipal para fazer o serviço de coleta determinou que seus coletores corram a pé atrás do caminhão, numa atitude muito humana, já que serão incontáveis quilômetros por dia.

O prefeito do município disse que o “MT” vai fazer um estudo para ver o que é pior: o coletor subir no estribo ou correr diversos quilômetros. E como prova de bom senso, sabedores de pronto que o estribo é muito pior, os coletores continuam correndo diversos quilômetros para realizarem seu trabalho. Até porque é notório o número exacerbado de acidentes com estes coletores, números que eu não tenho, você não tem, talvez ninguém tenha, mas o “MT” deve tê-los.

Não precisamos dizer que a coleta não será no ritmo que se realizava com o uso do estribo e que também a permanecer este cenário o contrato público deverá ser revisto, já que com o aumento do tempo, haverá necessariamente que ser tomada alguma medida para compensa-lo.

Qual o problema da salutar preocupação com a saúde dos coletores que trabalham coletando resíduos e andando no estribo do caminhão? Nenhum se fosse observado o ordenamento jurídico como deveria ser feito e ver quais suas implicações e descobrir quem determina o que. No caso em tela, talvez a empresa pudesse lançar mão da aprovada Lei da Liberdade Econômica. Talvez o façam, talvez prefiram um reequilíbrio no contrato público, já que dinheiro público está sobejando neste país.

Do exemplo, passaremos a discutir em tese, o que significa que não vamos buscar detalhes ou investigar o caso, mas partir do pressuposto que as coisas aconteceram no estado ideal do direito: o município cumpriu suas obrigações referente à política de resíduos.

Vamos agora compreender como se chega a um modelo de coleta de resíduos. No ano de 2010 nasceu a agora pré-adolescente Política Nacional de Resíduos Sólidos. Esta política é muito importante, porque observando o princípio da planificação estabelecido na doutrina do direito dos resíduos, determinou que os municípios fizessem seus planos de gestão municipal de resíduos. Estes planos são requisitos para que o poder público municipal possa receber verbas públicas federais e também constitui improbidade administrativa descumpri-lo, embora ainda não se veja ações populares ou ações civis públicas sobre o tema.

Como eu explico no pequeno manual de consulta rápida chamado Política Nacional de Resíduos Sólidos Urbanos – Guia de orientação para Municípios, nos planos municipais necessariamente deverão ser definidos a forma de coleta, destinação e disposição final de resíduos. Esta definição em si é muito importante, mas ela traz consigo um mecanismo digno de consideração: esta decisão é tomada pela população que é consultada sobre a política adotada no plano, que tem um horizonte de 20 anos, mas é ajustado a cada 4 anos.

Este plano vem ao mundo através de um decreto, embora algumas câmaras municipais transformem o plano numa lei ilegal com duração de 4 anos. O maior vício desta lei é que a Política nacional previu uma forma de democracia direta, com a decisão direta do povo e teoricamente seus representantes, os vereadores, deveriam se abster ou participar da discussão apenas como cidadãos, já que se o povo aprovar diretamente o plano, não podem os vereadores na qualidade de legisladores alterá-lo. O povo, que detém o poder, falou e seu empregado, que recebeu uma procuração para falar em seu nome, tendo o mandatário já falado, deve ficar calado.

Neste plano o dono do estado, o povo, aprova uma política. Em tese, para esta discussão, o povo decidiu a forma de coleta, que foi o modelo caminhão prensa mais coletor. Claro que a opção poderia ter sido outra, como é em Barcelona na Espanha, através de tubulação que suga o resíduo até uma estação de triagem. Poderia também ter sido com a escolha de caminhões prensa com braço coletor para pequenos contenedores, como é muito comum nos Estados Unidos da América. Enfim, temos uma vasta gama de modelos que poderiam ser adotados, inclusive o de não ter caminhão e cada munícipe entregar seu resíduo num lugar pré-determinado. Este modelo está na #HistóriaDosResíduos escrito aqui mesmo no Brasil seiscentista. São Paulo tinha norma que obrigava o munícipe a levar seu lixo em local pré-determinado pelo ente público. Importante: não havia taxa ou tarifa de coleta de resíduos. Mas isto não foi só no Brasil.

A definição no plano implica no modelo como o ente público, responsável primeiro pelos resíduos sólidos urbanos, contratará a solução adotada e cobrará por ela. Prevista a forma e cobrança, o poder público vai instrumentalizar a cobrança, já que há vedação que se use recursos livres, também conhecidos como fonte mil, para financiar este tipo de atividade estatal.

Esta definição irá para o orçamento público, que foi consultado publicamente e depois aprovado pela câmara municipal. Previsto no orçamento o Município deverá ter o dinheiro disponível, a depender da modalidade de cobrança, para então licitar o serviço. Licitado, há um contrato que deve ser respeitado, valores, orçamento público e o mais importante: ser respeitada a decisão do patrão, o dono do estado, estado que nasceu para servir e nunca ser servido.

Mas a decisão do povo parece que não é suficientemente forte para ser respeitada neste país, seja por mandatários, seja por servidores e toda a plêiade que compõe a burocracia estatal. Estes sempre sabem mais que o povo, só não conseguem produzir riqueza própria e vivem à custa deste mesmo povo que paga toda a conta do estado.

O que ocorreu, em tese, no caso da matéria é a prova que o direito se desintegrou. Dirão alguns: mas, e a saúde do trabalhador? A vida do trabalhador? Eu direi: é absolutamente não negligenciável. O que significa que medidas devem ser tomadas, mas tomadas no momento propício para que a vida das pessoas não se torne um hospício.

O tal “MT” já existia e estava lá quando o plano foi aprovado. Os coletores de regra são munícipes e também puderam se manifestar. Existe um compasso. Se qualquer um, mesmo o mais alto funcionário público, puder fazer o que quiser, penalizar, mandar refazer uma política porque discorda de todos que já tomaram uma decisão, então reconheçamos que já não existe democracia e nem segurança jurídica e nem seu ambiente necessário, senão um desordenamento jurídico.

No caso que citamos em tese, a questão é tão grotesca, que prevalece a vontade de um órgão, mesmo sem saber o que é melhor, considerando o que está escrito na reportagem. Tudo foi solapado, política pública aprovada, orçamento público, contrato público. Nada resiste e nem tem segurança jurídica quando um fiscal age sem inclusive saber o que é melhor. Me lembro dos meus tempos de faculdade, em que pervertíamos o brocardo latino tão sacro no direito penal para a versão venal e maculada, próprio dos meninos que não conhecem a vida, “In dúbio, pau no réu! ” (Na dúvida, pau no réu!)

Os coletores são homens honrados por seu importante trabalho, mas quero lembrar que eles em tese recebem um adicional pela profissão que exercem, ou pelo perigo que estão expostos ou pelo ambiente insalubre em que trabalham. Outra importante informação é que ninguém foi obrigado em sentença judicial transitado em julgado, cumprir pena como coletor. Foi uma escolha feita, uma oportunidade ou mesmo uma necessidade, mas devidamente consciente por parte do trabalhador.

O burocrata em tese ignorou o ordenamento, seja seu ramo administrativo ou dos resíduos. Não podendo determinar uma coleta 100% mecanizada, pois aí soaria mais absurdo sua intervenção, fez esta menor, mas tão perniciosa quanto! O fez, em tese, sem ter noção das consequências que seu ato traria.

Pergunto: como cumprir algo especifico, se um burocrata pode “revogar” toda uma política pública adotada? Não há, a acontecer situações como esta, nenhuma segurança neste país. O que o estado determina, ele não cumpre e ainda reprime seu cumprimento. O estado é o maior inimigo do estado. A única solução possível é reduzir urgente o tamanho do estado e tirar-lhe o máximo possível do poder.

Rogel Martins Barbosa, advogado, doutor em Direito dos Resíduos,professor do curso História dos Resíduos e autor de obras juridicas.

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