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20 de abril de 2024

RINDO DE NERVOSISMO


Por Elton Telles Publicado 04/10/2019 às 15h57 Atualizado 24/02/2023 às 22h39
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No universo DC Comics, nenhuma HQ narra com precisão a origem do personagem Coringa. Nas histórias em que se faz presente como antagonista do super-herói Batman, ele simplesmente surge como a personificação do sadismo e espalha o terror na caótica Gotham City. No entanto, no filme que leva a sua alcunha, o passado enigmático do irresistível vilão ganha forma pelo roteiro da dupla Scott Silver e Todd Phillips – este último também ostenta o crédito de direção.

Eis que Coringa é inicialmente apresentado ao público como Arthur Fleck, um homem com sérios distúrbios mentais que mora com a mãe e trabalha vestido de palhaço onde quer que contratem seu serviço de animador. Fleck alimenta o sonho de ser comediante e fazer carreira nos palcos de stand-up comedy, e também vislumbra um dia participar do talk show humorístico mais assistido do horário nobre.

Semanalmente, ele é atendido por uma servidora pública desinteressada em seu progresso, que lhe receita cartelas de remédios das quais Arthur se faz refém. Para agravar a situação, além do comportamento dúbio e aparência desajeitada, o personagem-título sofre de um doença neurológica que causa risada involuntária e escandalosa em momentos inoportunos, sempre recebida com aversão por quem está ao redor. Um dia no metrô, voltando para casa após ser demitido e trajando fantasia de palhaço, é justamente sua risada que causa confusão com um trio de rapazes agressivos. A partir deste infortúnio, o personagem começa a ser redimensionado, e agregando todos os problemas que explodem em sua cabeça, Arthur Fleck inicia a sua irreversível transição para Coringa.

A construção do protagonista como reflexo de sua infeliz condição somada às mazelas sociais que ele atravessa, tratado como um sujeito insignificante em uma cidade hostil e em situação de calamidade (assolada por greves, poluição, infestação de ratos, desemprego e violência a cada esquina), é um dos vários atributos a se admirar em “Coringa”. A trajetória pintada pelo roteiro, repleta de obstáculos e derrotas, nos aproxima do personagem e nos faz compreender – não aceitar – o grau de insanidade que passa a ser mais nítido em suas atitudes, sem que haja propriamente resistência por parte dele, e que termina por se tornar inerente em sua vida.

Por outro lado, é interessante observar que os fatores externos são encarados como gatilhos para Arthur manifestar todo o ódio e fúria que já carrega dentro de si, pois se trata de um indivíduo que convive com sérias perturbações e que, divago, nem deveria estar andando pelas ruas. Felizmente, o filme não faz do Coringa um coitado, uma vítima per se do sistema. É muito claro que ele tem essência negativa, basta recorrer às situações que ele julga engraçadas ou às alucinações que o perseguem. Todos os problemas que o cercam são combustível para sua psique inflamável e intrinsecamente perigosa. Bem articulado pelo roteiro, é positivo concluir que estamos diante de um personagem complexo em vez de uma caricatura, como ocasionalmente são abordadas as figuras adaptadas dos quadrinhos.

O fim do mundo, se acontecesse um dia, começaria pela Gotham idealizada neste filme. O caprichado design de produção, que constrói uma cidade suja, cinza, esfumaçada, com sacos de lixo nas calçadas e poças d’água em todos os cantos das vias, é um atrativo à parte e se revela bastante funcional por inserir de forma ágil o espectador curioso em um ambiente pouco convidativo. É quase possível sentir o odor das ruas. Claramente influenciado pelas instalações externas de “Taxi Driver” (1976), obra-prima de Martin Scorsese, que também pinta uma Nova York diminuída em imundícies, “Coringa” é habilidoso em criar uma atmosfera opressiva, ideal para a trama taciturna que discorre aquele espaço.

E já que citei Scorsese, outra referência identificável no filme é “O Rei da Comédia” (1982), com Robert De Niro invertendo o papel da produção oitentista e agora interpretando o apresentnador em vez do convidado. Trata-se de uma homenagem bacana, ainda que algumas decisões pareçam ser chupadas de ambos os clássicos. De Niro está ótimo como o vaidoso jornalista, em uma composição deliciosa como há tempos não o víamos entregar. Uma das cenas finais em que contracena com o Coringa, inclusive, ouso afirmar que é um dos pontos altos do cinema neste ano.

Especialista em dirigir comédias de gosto duvidoso, Todd Phillips surpreende na condução de “Coringa”, sobretudo por aguçar a história e torná-la cada vez mais interessante conforme avança rumo ao seu apoteótico e problemático desfecho. E aqui residem as minhas ressalvas ao filme: o teor político que pouco convence, viabilizado por um discurso deturpado e generalizado.

O pseudo-anarquismo que a trama atinge beira a ofensa em praticamente alçar como justiceiro com brilho de heroísmo um doente mental, uma pessoa com evidente transtorno psicótico. E nem me refiro à questão levantada sobre os incels, que, confesso, era uma terminologia desconhecida por mim antes de estourarem as críticas negativas precedentes ao lançamento do projeto. O desconforto principal é igualar rebeldia e irresponsabilidade, promovendo uma visão macro simplista e predatória quando o Coringa sobe no capô de um carro e é ovacionado por um rebanho de desordeiros. A luta e a indignação são válidas, mas a forma pela qual o roteiro desencadeia sua ideia central se mostra paradoxal e incondizente com a qualidade do filme até ali. O Coringa não é encarado como vítima, ok, mas também não deveria ser tratado como “herói” de uma suposta revolução.

Outros tropeços graves do roteiro incluem flashbacks sem razão de existir e praticamente toda a subtrama preguiçosa envolvendo a mãe do Coringa, interpretada pela atriz Frances Conroy. A participação é necessária, e justamente pela relevância no contexto da dramaturgia, merecia mais arrojo no desenvolvimento.

Agora, o que não há uma linha para retrucar é a performance magistral de Joaquin Phoenix como Coringa. Um dos intérpretes mais talentosos em atividade no cinema mundial, é impressionante como o ator pula de um papel a outro em produções diferentes e não conseguimos identificar nenhuma fagulha de vício ou maneirismo de interpretação, convencendo que a cada desafio Phoenix realmente “começa do zero”. Capaz de reproduzir uma risada assombrosa com naturalismo, o nível de concentração, incorporação, fidelidade e linguagem corporal 100% coerente com que esculpe seu personagem lhe dão méritos a ganhar qualquer estatueta de atuação na próxima temporada de prêmios. Absolutamente genial. Isso sem falar na transformação física para alcançar a magreza de Arthur/Coringa, repetindo algo próximo à dieta radical de desnutrição de Christian Bale para o papel central em “O Operário” (2004), só para citar um caso recente.

Não há uma cena sequer de “Coringa” em que Phoenix não está enquadrado, o que é compreensível, já que é o grande triunfo do filme e para quem os olhos do público se direcionam automaticamente e permanecem fixos, seja em momentos que contracena com outros personagens ou nas emblemáticas cenas do banheiro e quando desce a imensa escadaria ao som irônico de Frank Sinatra. O show é só dele.

Absorto em uma trilha sonora de melodia pesada e dramática assinada pela jovem Hildur Guðnadóttir, merecidamente premiada no Festival de Veneza, onde o filme faturou o cobiçado Leão de Ouro, “Coringa” é, para o bem e para o mal, um projeto ambicioso e transgressor. Consegue fugir do aspecto cartunesco e engrandecer o seu conteúdo, porém, da mesma forma, patina em algumas irregularidades do enredo, principalmente, no culto vazio e pomposo ao protagonista e em sua ingenuidade/ignorância política.

Pauta do Leitor

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