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20 de abril de 2024

CIVILIZAÇÃO DAS BRUXAS


Por Elton Telles Publicado 16/07/2019 às 01h56 Atualizado 23/02/2023 às 12h26
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Há muitas temáticas que podem ser extraídas e discutidas da fábula narrada em “Eu Não Sou uma Bruxa”, coprodução da Zâmbia e Reino Unido. A trama apresenta um acampamento em uma região rural onde são mantidas dezenas de mulheres acusadas de bruxaria. Como se fosse uma prisão, no local, quando elas não estão realizando trabalho braçal, são expostas que nem animais silvestres em zoológicos para saciar a curiosidade de turistas brancos que visitam o espaço.

Curiosamente, todas as bruxas possuem rédeas presas nas costas, um tipo de corda provinda de um carretel gigante que limita seus passos e as impede de alçarem voo para espalhar crueldade. Todas são adultas até a chegada da pequena Shula, uma criança de origem desconhecida que é apontada pela comunidade, sem provas concretas, como sendo uma bruxa. Ela então se junta ao clã, mas recebe tratamento diferenciado pelo governo, que aproveita de sua “paranormalidade” para fazer justiça.

Somente pelo resumo dos parágrafos acima, é possível compreender a pluralidade de assuntos que o eloquente roteiro do filme esbarra, conflitando gênero, poder, liberdade, política, integridade, casamento, entre outros tópicos. O mais evidente é a submissão do sexo feminino e a condição permanente de servidão, castradas por um regime ainda mais severo quando se tratam de mulheres “rebeldes”, uma vez que as bruxas são desprezadas pela sociedade. Em uma realidade que existe feiticeiras soltas por aí, elas são fisicamente aprisionadas em uma tentativa de “adestramento” para que, de alguma forma, se assemelhem às mulheres civilizadas, que também são prisioneiras, porém de ordem ideológica. O ponto em comum entre elas é a subserviência.

“Eu Não Sou uma Bruxa” é o primeiro longa-metragem dirigido e roteirizado por Rungano Nyoni, uma revelação do cinema contemporâneo. A cineasta merece distinção pelo engendramento coeso de tantos temas relevantes no mesmo script e pela inteligente alegoria da autoridade política e dominação masculina utilizando uma lenda popular. Da mesma forma, é impressionante como são funcionais as diferentes abordagens da direção para expor a história, alternando com fluidez entre a fantasia e a sátira social. No núcleo destes tratamentos, encontra-se um filme potente e absolutamente desconcertante que brota do misticismo e alcança um realismo lamentavelmente familiar.

Com apenas 9 anos de idade, a estreante Maggie Mulubwa é uma presença atrativa em cena e exibe força e doçura inegáveis em seu desempenho, compondo Shula como um objeto explorado por todas as pessoas que surgem em sua vida, o que inclui as bruxas companheiras. A protagonista é o motor de diversas cenas-chaves que fundem suspense, simbolismos e uma parcela generosa de estranheza, o que pode ser detectado na trilha sonora, por exemplo, que vai de Vivaldi ao hip hop britânico.

Talvez o aspecto exótico seja o que torna este um projeto tão desafiador aos olhos. Mas não somente. Caótico em algumas escolhas, “Eu Não Sou uma Bruxa” transpira tragédia e poesia, é um corajoso conto feminista que vai enfeitiçar o espectador com sede de originalidade.

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