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16 de abril de 2024

O racismo da sociedade brasileira de cada dia


Por Bloco de Notas Publicado 16/08/2018 às 16h30 Atualizado 17/02/2023 às 23h13
 Tempo de leitura estimado: 00:00

“Viver é muito perigoso”, escreveu João Guimarães Rosa naquele que é o livro mais conhecido dele, “Grande Sertão: Veredas”. A fala é de Riobaldo, o narrador que, na velhice, lembra-se do passado em que foi jagunço. Ao que tudo indica, ele é branco. Na TV, aliás, o personagem foi vivido por Tony Ramos.

Enquanto olho para minha edição do romance publicado em 1956, fico pensando o que teria dito Riobaldo se ele fosse um jagunço negro. Mais do que isso: e se João Guimarães Rosa tivesse sido negro e, sei lá, mordomo, não um médico branco e diplomata, o que ele teria escrito no trecho que me recordo?

Com toda a certeza, nada. Porque, sendo um homem negro nos anos 1950, Rosa teria que trabalhar muito para alguma família aristocrata na cidade ou no campo, teria que cuidar da família em algum cortiço ou na casa do fundo da propriedade do patrão e teria de se contentar com apelidos como “neguinho” e “crioulo”.

A estrutura social que hoje é ruim na época era pior. Mas e se esse Rosa negro tivesse existido e rompido com os limites impostos pela sociedade?

“Viver não é apenas perigoso: é um ato de coragem em uma sociedade racista”, talvez tivesse escrito; ou, quem sabe, “O negro, no Brasil, não vive: sobrevive. E sobreviver é perigoso”. Não, não. Há uma frase melhor, penso. “Viver é muito perigoso, ainda mais quando se sabe que um jovem negro morre no Brasil a cada 23 minutos”. Isso, sim, Riobaldo poderia dizer, caso a história fosse nos anos atuais e ele fosse negro, assim como se negro tivesse sido Rosa.

Eu penso em tudo isso enquanto olho para o livro porque me lembro que na sexta-feira passada, dia 10, um psicólogo que é mestrando na Universidade Estadual de Maringá registrou um Boletim de Ocorrência porque fora xingado por uma vizinha dias antes. Tudo teria começado porque partes da bicicleta desse estudante e da irmã dele estavam, em alguns momentos, na garagem da mulher.

De uma série de impropérios que ela poderia dizer, a vizinha chamou-lhe de macaco, disse-lhe que tinha cara de bandido. E daí para pior.

O motivo disso? O jovem e a irmã são negros.

Ah, mas e essa história de que partes da bicicleta estavam dentro da garagem da vizinha, hein, Victor? – você poderia me perguntar.

Eis aí outro problema que poderia ter sido resolvido com o síndico, eu lhe diria. O que a mulher fez foi triste, desumano, deplorável. Foi racismo. E não há desculpas ou outras justificativas para isso.

Ah, mas dizer já me chamaram de branco azedo, de magrelo, e eu nunca fiz mimimi por conta disso, Victor – você poderia me dizer.

Ainda bem que você não fez mesmo, é o que eu lhe diria, porque não foram os brancos e magros que sofreram com a escravidão no Brasil, nem com o desamparo do Estado desde o fim da monarquia e o início da República até os dias atuais – sem contar tantos outros problemas.

Entendeu?

As ofensas ao Lucas – esse é nome do estudante – foram registradas em áudio. Tive acesso ao material antes que viesse a público por conta de um contato ligado ao movimento negro em Maringá. Ouvi a gravação na redação do local em que trabalho. Em meio às alegrias de sexta-feira e os planos felizes para o fim de semana, confesso: eu chorei.

Chorei porque, primeiro, sou um ser humano; chorei, depois, porque sou um homem negro dentro da estrutura social, chorei porque o áudio evidencia o racismo da sociedade brasileira cada dia, chorei porque tinha certeza que, naquele momento, em outras partes do Brasil, outra pessoa negra estava sendo chamada de macaca, descendente de escravos e etc. Chorei porque o racismo é estrutural e pouco se fala sobre em Maringá, no Paraná, no Brasil.

Na tão propagada terra do juiz Sérgio Moro, na melhor cidade para se viver em uma série de quesitos, o racismo existe. Enquanto isso, o negro persiste e muitas vezes ouve que faz muito mimimi.

Ah, Victor, mas qual a razão de falar sobre racismo, cotas raciais? Nós somos todos seres humanos, ninguém é melhor do que ninguém.

Fale isso para a mulher que xingou o Lucas, para os assassinos de Marielle Franco, para as empresas que não têm negros em cargos de chefia, para o sistema de ensino escolar que não aborda assuntos envolvendo a cultura e a história da África a não ser em datas comemorativas.

Fale tudo isso sabendo que 54% das pessoas brasileiras são negras e, ainda assim, vivem em condições inferiores.

Ou, se achar melhor, fale isso para mim: que apesar da profissão, do cargo e da vida que levo, ainda sou seguido por seguranças em shopping, sento-me muitas vezes sozinho no ônibus com o banco vazio ao lado (mesmo com o veículo lotado e com pessoas em pé).

“Viver é muito perigoso, ainda mais quando se sabe que um jovem negro morre no Brasil a cada 23 minutos”, é o que diria nosso Riobaldo negro.

Que vivamos, sobrevivamos e não nos calemos; que ouçamos Ricon Sapiência que faz questão de colocar nos raps dele que “pretas e pretos estão se amando” (apesar de tudo); e que lembremos de Aretha Franklin, a rainha do soul, morta aos 76 anos nesta quinta-feira (16). Uma mulher. Negra.

É em tudo isso que eu penso enquanto olho para o “Grande Sertão: Veredas”. 
_

Fale com o cronista: victorsimiao1@gmail.com 

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