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18 de abril de 2024

Final Feliz


Por Victor Simião Publicado 30/08/2018 às 16h30 Atualizado 18/02/2023 às 03h08
 Tempo de leitura estimado: 00:00

Depois do trabalho, o botequim é o refugio de João. De segunda a sexta, vai ao ponto do Zé Eulálio, na Avenida Tuiuti.

– Dois rabo de galo, um conhaque com mel e uma salsicha da conserva – é o que sempre pede.

O álcool e o pedaço de carne processada são o refugio do casamento infeliz.

– Ou bebo ou mato aquela!

Goles e petisco barriga adentro, chega sempre às 23h na casa onde vive, na Vila Operária. Uma vez na cozinha, ameaça à esposa.

– Te esfaqueio, bruxa. Pensa que não sei que me trai?

A esposa, Maria, apequena-se. Ao padre, nega qualquer tipo de traição e pede conselhos.

– Nunca outro homem: posso me separar então, padre?
– Que não, mulher.
– É um pecado grande, padre?
– Que sim, mulher.
– Maior que fazer aquilo com crianças, padre?
– Que se cale, mulher!
– Sou uma mulher infeliz, padre!

Quando se casou com João, Maria não imaginava o inferno que viveria.

– Me prometia mundos e fundos, mãe. A senhora lembra: trabalhador honesto, sem vicio algum. Do que gostava? Um ou outro cigarrinho, Raça Negra, filmes do Rambo. E de mim, mãe.
– E não é, minha filha.
– Agora, quase todo dia, me xinga depois de beber dois rabo de galo, um conhaque com mel e comer salsicha da conserva no Zé Eulálio, mãe.
– E não é, minha filha.
– O que fiz para Deus, minha mãe?
– E não sei, minha filha!
– Sou uma mulher infeliz, mãe!

Numa quinta à noite, jogada no sofá após o expediente na limpeza de uma escola, só quer dormir. Mas todo o dia – há 13 anos! – os olhos só se fecham depois que João chega em casa. Ele, entregador de pizza, sempre volta às 23h. Nunca antes e nem depois: e com dois rabo de galo, um conhaque com mel e uma salsicha da conserva já guardados dentro de si.

Maria olha o celular e vê que ainda faltam 20 minutos para o retorno do marido pródigo. Infeliz que está, gostaria que ele entregasse pizzas na Mongólia para nunca mais voltar.

– Que eu morra na cruz porque no calvário já estou. Ou que Jesus Cristinho me salve!

E não é que o celular vibra na hora? Recado dos céus, é um vídeo encaminhado por Nilza, colega do trabalho. Um pastor fala.

Irmãs, cuidem dos maridos. Eles são, conforme a Bíblia, os responsáveis por manter a casa em pé. A felicidade deles depende vocês, irmãs. Então eu digo a você. Sim, a você mesmo. Pegue aquilo que ele gosta e prepare em um jantar especial. Quem sabe isso não reanime a paixão? Quem sabe isso não reanime o amor, o carinho, e acabe com todas essas discussões, irmãs?

Desanimada com a fé católica, Maria decide arriscar com o mensageiro neopentecostal. Planeja para o outro dia, sexta-feira, um prato especial para João. Enquanto pensa, ele chega.

– Cadê você, sua bruxa? Apareça logo ou te mato.
– Aqui, João!
– Pensa que não sei que você me trai?
– Eu nunca…
– Calada ou te mato. E não me siga, que vou tomar banho.
Em silêncio, deixa João tomar seguir em direção ao banheiro. Amanhã, espera ela, é um novo dia.

                                                                *** 

É sexta-feira.

No Cidade Canção após o expediente, Maria sabe o que comprar: um garrafa de rabo de galo, conhaque, mel e salsicha em conversa. E uma faca nova, para cortar a fina iguaria em tamanhos ainda menores.

Já em casa, de vestido amarelo, prepara a mesa forrando um pano verde sobre ela e todos os itens que comprou no mercado mais cedo. João deve chegar em breve. Banhada e perfumada, está decidida a dar novo rumo ao casamento. Até assiste ao vídeo do pastor mais uma vez.

– Sim, vai dar certo, meu senhor Jesus Cristinho – diz para si mesma.
Às 23h, a porta da cozinha é aberta.
– Hoje sexta-feira, bruxa, e eu estou em casa. Cadê você.
– Aqui, João, na mesa!
– …
– Que é, não gostou?
– …
– Fiz especialmente para você, para salvar nosso casamento…
– …
– …E para buscar uma forma da gente ser feliz de novo.

João queda-se calado; Maria sente-se feliz. Pensa ter dominado o homem com aquilo.

– Eu sabia, João, que você iria gostar!

Que nada: o monstro volta a aparecer.

– Gostar, sua bruxa? Quem disse que. Aqui não é o bar do Zé Eulálio, viu? Deve tá tudo envenenado isso aí. Que eu sei. Você me trai. Coisa do outro. Que eu sei que existe. Não vou comer nada disso, bruxa. Você vai comer e beber tudo sozinha. Que aqui não é o bar do Zé Eulálio, viu, bruxa. Eu só bebo e como isso lá.

Maria desaba a chorar e apoia as mãos sobre a mesa.

– Agora chora, é? Não seja falsa, não seja estupida, não seja boba. Ou pare ou te mato, sua bruxa. E não me siga, que vou tomar banho.

De costas e caminhando em direção ao banheiro, João não vê quando a faca recém-comprada entra em suas costas e lhe rasga. Caído no chão, o entregador de pizza mal consegue abrir os olhos enquanto a lamina entra e sai de seu corpo. Não grita nada, não pensa em nada, não faz nada.

Maria, essa sim, balbucia palavras – mas não chora mais.

– A minha vida. Você acabou com ela. A minha vida. Os meus sonhos. Eu nunca. Eu sempre quis. Mas aí você. E me prometeu. Me enganou. Agora. Agora. Agora…

O sangue empoça todo o chão da cozinha.Maria levanta-se e vai até pia para lavar as mãos. O vestido amarelo, todo vermelho, ainda tem o brilho do amaciante. Ela pega o celular e liga para a polícia, que atende rapidamente. Maria, respirando fundo, identifica-se, diz o endereço e conta o que aconteceu. Antes de desligar, finaliza com uma constatação.

– Não mais uma mulher infeliz!

Maria senta-se à mesa. Pensa nos 13 anos de casamento, no que fez com João com há pouco, na qualidade da faca recém-comprada. Enquanto aguarda a Polícia, bebe dois rabo de galo, um conhaque com mel e come uma salsicha.

___

Fale com o cronista: victorsimiao1@gmail.com

 

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