Cláudio, o motorista
A relação entre mim e Cláudio, o motorista, durou dois anos. Enquanto vivi no Jardim Alvorada, nos encontrávamos de segunda a sexta-feira. Mesmo que rapidamente e com hora marcada, valeu a pena. Diariamente passávamos parte da manhã juntos: entre 7h10 e 08h, quando eu desembarcava da linha 512 que ele dirigia, no ponto da Avenida Brasil, quase esquina com a Avenida Herval.
Por algum motivo que não me lembro qual, comecei a me sentar no primeiro banco do veículo, o que fica à direita do motorista, antes da roleta. Ali, lia meus livros, textos da faculdade, evitando a todo custo conversar com o responsável pela viagem. Não por má educação, mas por respeitar um aviso que tem na parte superior do painel frontal, em que se lê “Fale com o motorista somente o indispensável”.
Até que um dia, instigado por algum espírito maligno – resquício, talvez, de um domingo assistindo ao Domingão do Faustão e Domingo Legal – olhei para o motorista e disse:
– Cláudio!
Ele me olhou.
– Pois não.
Eu sorri.
– Somente o indispensável!
Ele não entendeu. Aí eu expliquei que, respeitoso que sou, apenas cumpri o que ordenava o recado quanto ao que dizer com o motorista. Daí o Cláudio riu.
Daquele momento em diante, a amizade fortaleceu. Talvez pelo meu tipo de óculo, pela barba, pelos livros que sempre carregava, o Cláudio só se referia a mim como professor. E eu, para não ser deselegante, nunca disse que era apenas um estudante de jornalismo, cujo único conhecimento que eu tinha a respeito do mundo era que o Bar do Zé tinha a cerveja mais gelada de Maringá. Das vezes que tentei dizer o que fazia da vida, fui desarmado.
– Cláudio, eu preciso dizer que a verdade é que…
– Professor, você é ótimo. Tão jovem e já diz essas coisas que depois eu digo lá em casa e a Martinha, a minha paixão, adora.
Como eu poderia desmentir?
– Sabe, professor, o Léo adorou esses livros que o senhor nos deu. Ele tá com seis anos agora, aprendendo a ler. Então é muito bom, ainda mais vindo de uma pessoa que dá aula, que ensina os outros.
Me diga, leitor, como?
Ao longo do tempo, também comecei a falar sobre a minha vida para ele, sem peso algum na consciência. Fechado e discreto que sou, optei por dizer algumas incertezas, opiniões não muito populares, e sem medo! Não são os desconhecidos que nos fazem mal, mas aqueles que nos conhecem, que se dizem nossos amigos. Que, mesmo assim, quando ouvem uma ou outra história, passam o fato adiante, mesmo que seja uma mentira.
– Sabe, Cláudio, um dos meus medos na vida é que essa intolerância política piore. Que a censura volte, que as pessoas se sintam no direito de praticar homofobia, de ser racista. Espero que 2015 seja um ano melhor.
– Também espero, professor. Ah, o senhor pode explicar o que é homofobia?
Durante dois anos, falamos sobre política, desilusões amorosas, decepções no emprego, motores de carro, cervejas ruins, pessoas más, paternidade. A parte frontal do ônibus era um mundo. Até que um dia, devido à mudança de emprego, eu não mais pegaria aquela linha. Meio sem jeito – mesmo que sem motivo – dei minhas justificativas. O meu motorista-amigo entendeu.
Assim que desci do ônibus pela porta da frente, olhei no fundo dos olhos daquele homem. Era chegado o momento.
– Preciso te dizer uma verdade, Cláudio: eu não sou professor.
Ele deu um sorriso amarelo mas não se mostrou assustado, surpreso. Era como se esse detalhe não interferisse em nada do que conversamos. Ainda bem.
– Tudo bem, meu jovem. Aproveito, então, para também te dizer uma verdade.
– …
– O meu nome não é Cláudio: é Jorge.
A porta se fechou, o ônibus se foi.
Desde então nunca mais me sentei antes da roleta.
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Fale com o cronista. O e-mail dele é victorsimião1@gmail.com.
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