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20 de abril de 2024

A bicicleta vermelha


Por Victor Simião Publicado 25/07/2019 às 17h25 Atualizado 23/02/2023 às 15h37
 Tempo de leitura estimado: 00:00

(Para o meu querido irmão Rafael Simião)

Em criança, meus tios costumavam dizer que eu era o sobrinho mais inteligente da família entre os que haviam nascido em 1994. Eu adorava. Aos cinco anos, em 1999, falava palavras difíceis como paralelepípedo, Fernando Henrique Cardoso e FMI. Aos sete anos, já pronunciava expressões como faça-me o favor, mas será o cúmulo e seu guarda, eu não sou vagabundo, não sou delinquente, sou um cara carente: eu dormi na praça, pensando nela. Aos oito anos… Bem, aos oito anos, percebi que eu de fato era o sobrinho mais inteligente que nascera em 1994 – até porque eu fora o único a nascer naquele ano.

– Para um garoto inteligente, até que você demorou a perceber isso, hein? – me disse um tio, rindo.

– Então me explique como se formam os buracos negros e qual a relação entre Sobral (CE) e a teoria da relatividade? – eu respondi, como um desafio. Ele se calou. Quem começou a rir fui eu. Abençoados sejam os nascidos durante o tetra da seleção brasileira masculina de futebol!

Me lembro dessa história de infância porque há dias tenho em mim a memória de uma bicicleta vermelha. Deve ter sido criada após a leitura do ótimo “A bicicleta de carga e outros contos”, de Miguel Sanches Neto; ou porque conversei há pouco sobre infância com uma amiga. O fato é que a primeira bicicleta que tive foi vermelha. Eu tinha oito anos de idade.

A situação da nossa família não era fácil em Umuarama. Morávamos em uma casa de aluguel, meu pai trabalhava em uma empresa e minha mãe era dona de casa. O meu irmão, aos 14 anos, já trabalhava também. Não me lembro bem o motivo, mas meus pais decidiram nos presentear com uma bicicleta para cada filho. Suspeito que naquela semana de janeiro eles tenham visto alguma propaganda do Magazine Luiza: “Só amanhã no Magazine Luiza você compra: bicicleta vermelha em 24 vezes sem juros. Mas, atenção, é só amanhã no Magazine Luiza”. Pobre adora promoção assim.

Sabendo que ganharia uma bicicleta vermelha, eu não dormi naquela quinta-feira. Ansioso, calculei a distância entre os planetas, estudei a formação das placas tectônicas e memorizei três ou quatro frases em esperanto. Eu sonhava acordado em dar as minhas pedaladas por Umuarama: me via passando em frente à casa da A. e gritando que ela era a minha paixão mesmo ela tendo 18 anos e dois filhos; eu conseguia me ver apertando campainhas e saindo correndo, não sendo pego por conta da ultra-velocidade que eu alcançaria com bicicleta; me imaginava disputando corridas nas ruas esburacadas e ganhando todas elas: o automóvel vermelho seria imbatível.

Na tarde de sexta, sozinho em casa, eu aguardava a chegada das bicicletas. Suado, meu irmão apareceu sobre uma. Perguntei a ele onde estava a minha.

– Não tem sua. A mãe só pôde comprar uma, aí pegou para mim – o Rafael respondeu.

Eu comecei a chorar feito uma criança de oito anos. Todo o meu mundo desmoronou: não queria mais saber de estudar, de correr, de falar línguas complexas. O que queria eu não tinha – a bicicleta vermelha.

Alguns minutos depois, minha mãe chegou. Ao ver aquela cena, o piá caçula berrando e o mais velho em uma bicicleta vermelha pequena, perguntou ao Rafael o que acontecera.

– Eu disse que a senhora só tinha comprado uma bicicleta, mãe, e aí ele começou a chorar.

– Por que você disse isso, Rafael? Você sabe que não é verdade. João Victor, a bicicleta em que o Rafa está montado é sua. A dele está vindo logo mais, com o seu pai.

Feito Lázaro saindo do túmulo, meu choro acabou. Ressuscitado, feliz, corri para a bicicleta vermelha em que meu irmão estava montado. Ele entregou-a para mim.

– Desculpas, João. Era só uma brincadeira. Você quer me bater para revidar o que eu te fiz?

– Não, Rafael. Mas gostaria de te fazer uma pergunta: me explique como se formam os buracos negros e qual a relação entre Sobral (CE) e a teoria da relatividade?

Ele não soube responder e abaixou a cabeça.

E eu, feliz, sai a pedalar pelas ruas de Umuarama. A primeira parada seria a casa da A.

 

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